Onde Tatu ?!!!
Onde Tatu ?!!
2018. Pigmentos naturais e tinta acrílica sobre tela. Chapada dos Guimarães, MT. 40X50 cm.
Pintura feita com base (releitura) em desenho ancestral Boé-Bororo feito nos paredões de Chapada dos Guimarães, MT.
Faço parte da terceira geração de brasileiros que se originou da imigração - diáspora - de campesinos italianos e espanhóis para Pindorama Brasil que aconteceu no final do século XIX e início do século XX. Meus
ancestrais recentes são majoritariamente cristãos (Sec I) de diferentes origens étnicas: Etruscos (Sec XII a, C); Iberos (Sec VI a,C); Venetis (Sec X a, C); Latins (I a, C); Celtas (XII a, C); Judeus (Século VII a, C) - Ashkenazi (Sec I), e provavelmente ancestrais Imazighen, como Nilotas e Sãs (XXX a, C) etc. Nasci no sopé do Peabiru (Marialva, PR) em 1975. Ao migrar para Mato Grosso (1986), morei em três cidades: Rondonópolis, que leva este nome devido à implantação das históricas linhas telegráficas comandadas pelo Marechal Cândido Rondon; Cuiabá, local onde Cândido Rondon marcou o Centro Geodésico da América do Sul e, Chapada dos Guimarães, onde está localizado o Mirante do Centro da América do Sul. Em 2004 me casei com a Emyle, de Cuiabá e minha filha, a Iza, embora tenha nascido em Cuiabá é de Chapada dos Guimarães onde foi gerada, registrada e viveu seus primeiros anos de vida. Foi mirando Cuiabá e o horizonte do Morro de São Jerônimo que a curiosidade aumentou...
Dan Pelegrin e Emyle Daltro
Centro da América do Sul - Centro de Abya Yala. 2006 - 2021.
Duas fotografias manipulas e misturadas por computador.
Chapada dos Guimarães, MT - Fortaleza, CE
O povo Kuna do Panamá e Colômbia, antes da chegada - invasão - de Cristóvão Colombo e dos europeus (1492), deram o nome ao continente americano de Abya Yala, cuja tradução é “terra de sangue vital” ou “terra madura”. Ao sul de Abya Yala, foi criado o estado de Tawantinsuyu, que em quíchua significa “os quatro cantos da terra”, resultado de uma sucessão de povos que se unificaram formando o "império" da civilização Inca, cujo centro político administrativo estava em Cuzco, que por sua vez significa “Umbigo do Mundo” (disse "império" entre aspas pois a significação que costuma nos levar ao antigo Império Romano não se aplica com precisão ao caso). Do “Umbigo do Mundo” saíam caminhos que levavam até Pindorama, o mais conhecido deles é o Peabirú (caminho de grama pisada), esse era um dos caminhos que levava ao outro lado, ao sul de Abya Yala que, naquela época, era o lado mais oriental do oriente do extremo oriente. Se considerarmos, e devemos, a imensa população que chegou em Abya Yala atravessando a Berígia (Estreito de Bering), ou de canoa via oceano pacifico, somos para lá de orientais. Vale a pena reafirmar que o início da migração humana para Abya Yala data de mais de 30 mil anos, portanto antes do último Máximo Glacial e não de metade disso, (15 mil anos, depois da era Glacial) como aponta muitas pesquisas. As evidências arqueológicos que comprovam essa datação (30 mil) foram descobertas e divulgados recentemente (Revista Nature, 2020), também lembramos que o Peabirú era um caminho específico, mais ao sul, de cerca de 3000 km, que ligava o oceano Atlântico ao oceano Pacífico.
Existem também indícios que parte destas civilizações foram visitadas por navegadores chineses em 1421, cuja produção de mapas ou pistas estimulou a vinda - invasão - de europeus, notadamente Portugal, Espanha, Holanda, França e Inglaterra... Vale lembrar que vários desses homens de origem européia, pelo caráter violento e virulento do contato são considerados pela historiografia como grandes genocidas dos povos originários de Pindorama - digo "virulento" pelas hipóteses de genocídio causados por contágio, por transmissão intencional de diversas doenças como varíola, sarampo, febre amarela ou mesmo gripe.
O navegador e explorador italiano, Almirante Cristóvão Colombo, ao chegar em Abya Yala, se convenceu que o paraíso terrestre estava em algum lugar no centro do território, especificamente na nascente do rio Orinoco, que tem 2.140 quilômetros de extensão. A nascente do rio Orinoco está na serra Parima ou Pacaraimã, fronteira do Brasil com a Venezuela. Os povos Pémon, Igaricó, Macuxi entre outros, definem a serra como “mãe das águas”, devido ao divisor que corre por um lado para a bacia do Orinoco e por outro para bacia Amazônica, sendo o Monte Roraima um dos pontos de maior centralidade. Mapas antigos, sonhos de paraísos, terras ricas e desconhecidas atraíram, muitos caçadores de tesouros, piratas e aventureiros para além dos quatros cantos de Tawantinsuyu. Ainda hoje muitas desses territórios reservados aos povos originários de Pindorama são alvo de garimpo ilegal, desmatamento ilegal etc.
A grande porção de terra ao sul de Abya Yala, que foi chamada de América do Sul pelos europeus pós Colombo, é disforme e com uma borda irregular, é preciso fixar âncoras para encontrar centros ou fazê-los por definição que combinam política e geologia, como aconteceu em Cuzco (Umbigo do Mundo), onde a definição desse centro considerou a geologia de centralidade em relação à imensa linha da Cordilheira dos Andes e também às concentrações e aos deslocamentos das populações históricas que habitavam a Cordilheira. Nesse sentido, se o planeta é redondo, geométrico, e se posicionarmos a grande porção de terra ao sul de Abya Yala no centro do globo terrestre, poderemos, de forma intuitiva, imaginar um centro deslocado de Cuzco mais ao centro, distanciando-se da Cordilheira dos Andes e, nessa linha, destaca-se o Paralelo S15, linha geodésica relatada pelo Santo Dom Bosco, em 1883, como local de uma rica “terra prometida”. Brasília, capital política e administrativa de Pindorama Brasil, possui monumentos e igreja fazendo referência ao sonho que dita as coordenadas do Paralelo S15 e S20 e em Chapada dos Guimarães existe a Casa do Sonho. Porto Seguro, Cuiabá/Chapada dos Guimarães e o centro político de Tawantinsuyu se encontram no entorno desta mesma linha imaginária S15. Coincidência?! Com essa âncora – o Paralelo S15 – é possível medir a distância de litoral a litoral definindo um centro.
Em 2007, com o GPS do promotor de justiça de Chapada dos Guimarães Jaime Romaquelli e a ajuda de Enimar Athaide e Ely Buarque, vivenciamos a experiência de buscar o centro do Paralelo S15 com o Meridiano W55, quadrante onde se encontra a Chapada dos Guimarães...
Paralelo 15°:30':30" com Meridiano 55°:30':30"
2007. Fotografia. Chapada dos Guimarães, MT
Depois de encontrá-lo, nos questionamos: qual o sentido em encontrar um ponto em um entroncamento? Por associação de sentidos, analogia, podemos dizer que a serra “mãe das águas” do Centro Oeste (bacia do Prata e bacia Amazônica) é a Chapada dos Guimarães e o Morro de São Jerônimo para os Boé Bororo foi nomeado como Aturuári Bokodoriri ou Grande Morro do Tatu Canastra. E o que nos diz o morro mais alto?
Aturuári Bokodoriri (Grande Morro Tatu Canastra)
2009. Fotografia. Chapada dos Guimarães, MT.
A serra da Chapada possui muitos mirantes onde é possível observar a planície pantaneira, cada local com sua beleza e características singulares. No mirante do Centro da América do Sul, por exemplo, o acesso é fácil, está próximo a cidade de Chapada dos Guimarães e costuma ser o fechamento de um dia de passeios com a observação do por do sol, existe no Mirante do Centro da América um meio círculo natural que possibilita uma bela visão de um dos lados da serra de Chapada e da Serra de São Vicente.
Também podemos sentir essa sensação de centralidade, no Aturuári Bokodoriri, embora o acesso seja mais difícil devido à leve escalada, há um círculo inteiro e de maior altitude, aliás é o ponto mais alto de Chapada dos Guimarães com 860 metros, isso possibilita ao visitante uma mirada de 360 graus! Se posicionarmos os mirantes do Paredão do Eco, Cidade de Pedra como o outro lado em relação ao mirante do Centro da América, o Aturuári Bokodoriri se torna eixo de centralidade entre os dois pontos de observação.
2009. Fotografia. Chapada dos Guimarães, MT.
Também podemos estabelecer relação de centralidade entre os Morro de Santo Antônio, a frente das escarpas de relevo elevado de Chapada dos Guimarães, e o Morro do Cambambe, atrás das escarpas. O morro de Santo Antônio do Leverger ou Aturuári Toroari (Grande Morro do
Gavião em Boe Bororo), o Aturuári Bokodoriri (Grande Morro do
Tatu Canastra), hoje chamado de Morro de São Jerônimo e o Morro do Cambambe, provavelmente, são
morros complementares, irmãos no sentido sagrado de Aturuá (herói gigante), sendo
que do alto do Morro de Santo Antônio, além da planície pantaneira, vemos no
horizonte, as linhas do Rio Cuiabá e suas alterações no nível da água. Tudo isso
se alia a contos Bororo. Vale lembrar que Cuiabá era território Boe e Chapada
dos Guimaraes era considerada território sagrado Boe. Já na região do Morro do
Cambambe, antigos cânticos relacionados a dança do Siriri falam de um gigante... Devido às descobertas
paleontológicas a partir dos anos de 1930, o “Gigante do Cambambe” foi
relacionado à descoberta dos ossos de titanossauro, mas, segundo alguns
moradores da região, o gigante lendário pode ser também um humano, ou ainda Aturuá, o herói Boe.
Aturuári Aturuá se traduz grande morro do herói gigante. Esses fragmentos de memória, que resistiram a violência dos apagamentos e dos encobrimentos, que passaram de geração a geração por tradição oral e que em alguma medida se relacionam com as contribuições dos Boe Bororo à toponímia do
centro da América, mostram um pouco da característica cultural de existir muitos relatos e significados para um mesmo ponto de observação.
Esses pontos de vista não deveriam ser reduzidos ao jogo dual da relativização vencedor/vencido, de alternância de perspectiva entre o "eu" e o "outro" de modo a dar continuidade as perversidades do apagamento, do silenciamento social ou do encobrimento do outro. É preciso considerar também que no estudo e descrição da história, muito do que nos contaram, são construções ideológicas, de acordo com o filósofo Enrique Dussel, "a visão que temos da história das culturas, quando falamos de interculturalidade, tem um esquema de exposição completamente eurocentrado". Essa obrigação do historiador, de difundir e esclarecer, que Marc Bloch criticamente descreve em seu livro, muitas vezes é prejudicada pelos interesses individuais e ideológicos de falsos "vencedores" e o resultado, geralmente, é não responsabilizar (anistiar, "passar pano" etc), não corrigir ou rever erros, omissões ou incompletudes sobre o que foi difundido ou está sendo contado.
Morro de Santo Antônio ou Aturuári Toroari (Grande Morro do Gavião), 2009. Fotografia
Chapada dos Guimarães, MT
Chapada dos Guimarães, MT
I Conferência Livre de Direitos Humanos dos Povos Indígenas do Ceará. 2016. Fotografia.
Reserva Indígena Pytaguari. CE
Essa experiência foi inspiração poética para definir, criar, o que chamei de Caminhos do Paralelo 15S, 2007 (Peparalelo). Nesse caminho, voltar ao Grande Morro do Tatu Canastra (Trovão, Tupã, Xangô ou São Jerônimo...) como início/fim de uma caminhada, para mim, se uniu a muitos sentidos e me fez lembrar anciãos peregrinos que diziam que caminhar tem tanto sentido quanto chegar.
Neste caminho, surge a reflexão de que, da mesma forma que a existência de Cuzco (Umbigo do Mundo) não concorre com Machu Piccho (a Velha Montanha), Cuiabá e o Pantanal não concorrem com Chapada dos Guimarães, eles são complementares e unidos intrinsecamente, ou seja, sem a planície não há o planalto. Observando a singularidade e história de cada local, também podemos afirmar a complementariedade e a ligação entre os mirantes da Chapada e os morros em seus horizontes.
Hoje, morando em Fortaleza, CE, que leva este nome devido às fortificações aqui instaladas por colonizadores portugueses a partir de 1603 (Forte São Tiago, Marco Zero etc.) e, residindo próximo ao Porto de Mucuripe, onde historiadores afirmam que o navegador e explorador espanhol Vicente Ianes Pinzon aportou em janeiro de 1500, é possível sentir reminiscências de um “cabo de guerra” medieval, galego-asturiano (Castela e Leão) onde filhos de reis se matavam para dividir as terras altas da Península Ibérica, sem deixar de vista a (re)conquista. Portugal e Espanha, embora tenham suas diferenças e singularidades, estão tão ligados histórica e geograficamente quanto a Bolívia, Paraguai e o Mato Grosso, assim como há também ligação da Ponta do Mucuripe, CE, com Porto Seguro (Paralelo S15), ou ainda de Cabo de Santo Agostinho (PE) com Porto Seguro, ligações as vezes encobertas, pois, provavelmente uma “descoberta” espanhola iria esbarrar em interesses e na manutenção política das novas fronteiras, linhas imaginárias vistas no Tratado de Tordesilhas. Percebo também reminiscências de acordos ibéricos e das disputas (guerras) medievais quando busco literatura que fala da grande imigração de espanhóis para o Brasil no final do século XIX e início do século XX, os descendentes desta grande imigração somam cerca de dez milhões de pessoas, da qual faço parte, e isso costuma ser ignorado ou tratado de forma obscura pela historiografia no Brasil.
Hoje em dia podemos ainda fazer uma análise crítica das ligações intrínsecas de Abya Yala e das linhas divisórias, sejam elas de origem espanhola, portuguesa, inglesa etc. e da importância da desconstrução ou ressignificação de linhas e barreiras que impedem uma articulação heterárquica (não hierárquica) entre os territórios e pessoas.
É preciso dar respostas à perversidade de algumas pessoas de dentro e de forra desses territórios que, abusando do poder econômico, continuam subjugando populações e se apropriando de recursos indispensáveis para o bem viver da imensa maioria dos povos.
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